Estima-se que algo entre cinco e seis milhões de imigrantes europeus aportaram na costa brasileira durante esse extenso período; contingente populacional que foi se somando aos portugueses e africanos aqui já estabelecidos junto às várias nações indígenas nativas. De outros continentes, também vieram para o Brasil: judeus, árabes, japoneses, etc, e aos poucos foi se delineando o perfil populacional da nação que hoje conhecemos: um Brasil pacífico, miscigenado, de grandes dimensões e de grandes contrastes.

          No nosso Estado de Santa Catarina o processo de colonização estrangeira se inicia basicamente com o estabelecimento dos portugueses na região litorânea, a partir da primeira metade do século XVI, com a fundação das cidades de São Francisco do Sul, Desterro e Laguna. No século XVIII com o surgimento dos Caminhos das Tropas são fundadas cidades como Lages na Serra Catarinense. Já no século XIX a colonização europeia tem início com a chegada de imigrantes alemães na região de São Pedro de Alcântara, e posteriormente a ocupação do Vale do Rio Itajaí-Açu. Italianos também vão para aquele Vale, mas igualmente se estabelecem na região Sul. Já no século XX emerge a Guerra do Contestado que deixa suas marcas em terras do Meio Oeste e do Norte do Estado; período em que italianos, alemães e seus descendentes provenientes do Estado do Rio Grande do Sul vão, pouco a pouco, ocupando o Oeste e o Extremo Oeste. Nesse intervalo de tempo, em menor quantidade, imigrantes de outras origens também vão se acomodando em terras catarinenses: poloneses e outros povos eslavos, austríacos, russos, franceses, belgas, japoneses, árabes, entre tantos outros. A chegada de africanos de vários países e seus descendentes é registrada desde a vinda das primeiras embarcações que no século XVI. A presença das etnias Xokleng, Caingangue e Guarani ainda são majoritariamente registradas na área indígena denominada Terra Indígena Laklãnõ, região da cidade de Ibirama. Fato é que a população catarinense acabou se configurando em um mosaico de etnias. Etnias cujos descendentes, além de partilharem o mesmo espaço, ainda preservam e valorizam muito dessas origens.

          Banhado pelo mar, nosso Estado possui um relevo acidentado, montanhoso, e consequentemente um robusto sistema fluvial, que associado a solos férteis, foram e são em grande parte propulsores de uma diversificada geração de bens. Essas qualidades também contribuíram para formação da base estrutural necessária para a ambientação de povos tão diversos nesse território. O saber fazer original do imigrante assim teve que se transformar, se adaptar e acabou produzindo algo novo, único: um outro original. Viajar por terras catarinenses nos proporciona conhecer riquezas dessa natureza. Vemos isso principalmente nas manifestações culturais regionais: gastronomia, usos e costumes, sotaques, arquitetura, arte, tradições, folclore, música, danças, festas, ritos, religiosidade. Essas características evidenciam um pouco mais o que é ser um catarinense: algo que talvez transponha sua natural hospitalidade e exponha o perfil de alguém capaz de ser múltiplo e ser único ao mesmo tempo.

          Por terras catarinenses e com essa perspectiva tenho viajado há alguns anos. Além do privilégio de vivenciar inúmeras experiências, sou testemunha de quantas e quantas histórias ouvi, presenciei e o quanto estas me sensibilizaram. Sem dúvida posso afirmar que possuímos um imenso patrimônio cultural imaterial que ainda carece de maior valorização e de pesquisas dignas de sua magnitude.

          Pela singularidade que possui, compartilho com vocês uma dessas significativas histórias. Uma história carregada de heroísmo, significados e simbolismos que só o ser humano é capaz de emanar, e que de certa forma, reproduz em muito da saga dos imigrantes que aqui aportaram.

          Era 10 de setembro de 1933. Na estação de trem da cidade de Wörgl na Áustria 85 homens, em sua maioria do Tirol e de Vorarlberg, liderados pelo Ministro da Agricultura Andreas Thaler, se reuniram para tomar o trem com destino a Gênova na Itália. No porto de Gênova embarcaram no navio “Principessa Maria” em direção ao Rio de Janeiro. Durante as atividades da viagem merece destaque a criação da Banda dos Tiroleses e do Grupo de Danças Folclóricas Austríacas Schuhplattler; entidades culturais que permanecem vivas e atuantes até os dias de hoje. Depois de oito dias no Rio de Janeiro embarcaram no barco “Baependi” para São Francisco do Sul, SC. De lá seguiram a viagem de trem em direção ao oeste de Santa Catarina até a cidade de Porto União, e depois ao sul até estação de Itapuí localizada na Barra do Rio São Bento (atualmente a cidade de Ibicaré, SC). Faltavam ainda 14 km até o destino final, mas antes era preciso atravessar o rio. “A travessia das pessoas era feita por uma piroga (embarcação feita de tronco de árvores), e para as carroças, era usada uma balsa primitiva guiada por um cabo de aço. A travessia das máquinas pesadas era uma façanha.” ...”Quando os pioneiros chegaram à Sede São Bento encontraram pessoas já assentadas, provenientes da Baixa-Áustria, que, sob a liderança de Anton Schaupenlehner, haviam chegado em 1930. Nessa região da colonização ainda restavam alguns casebres de antigos colonos, que há tempos tinham abandonado o local. Nessas habitações miseráveis os recém-chegados encontraram alojamento provisório. Apesar de tudo estavam felizes, mas ninguém queria pernoitar ao ar livre....” [75 anos Dreizehnlinden - Treze Tílias de Martin Reiter]. De Ibicaré seguiram a pé, com carroças e equipamentos até o local da colônia. Conta-se que eles chegaram no final da tarde de 13 de outubro de 1933. Este grupo de austríacos foi “pioneiro” em desbravar o caminho para os próximos treze grupos de imigrantes que viriam depois. Organizadamente esses imigrantes pioneiros dão início à construção da nova colônia: Dreizehnlinden. Ali eternizam, de certa forma, os ideais “da vitória do amor sobre a violência” contida nos célebres poemas do livro homônimo de Friedrich Wilhelm Weber que tanto inspiraram o Ministro Thaler.

          No total chegaram 789 cidadãos austríacos até o ano de 1938. Além destes, posteriormente italianos e alemães também se estabeleceram na colônia. Em função de que a língua alemã foi proibida no Brasil, em 1941 o nome original da cidade foi alterado de Dreizehnlinden para Papuan (nome do rio que corta a cidade). Somente a partir de 1956 o nome passou a ser Treze Tílias, tradução de Dreizehnlinen para o Português. Além do idioma Português o Alemão continua sendo utilizado com frequência entre os habitantes do município. Dialetos das regiões do Tirol e de Vorarlberg ainda são preservados.

           Historicamente a localidade de Linha Babenberg surge em 1934 como a primeira comunidade agrícola da colônia Dreizehnlinden. Muito provavelmente o nome Babenberg fez referência a uma dinastia nobre de Marqueses e Duques da Áustria que existiu entre os anos de 976 e 1246. Um olhar inclusivo sobre esta comunidade temos a partir das palavras da Sra. Maria Ana Unterberger no livro [Páginas da Vida - As histórias das comunidades do interior de Treze Tílias]: ”Já em outubro de 1933, ficou decidido pela administração da colônia, que todos os moradores deveriam trabalhar numa espécie de comunidade. Foi combinado que assim que houvesse os mantimentos básicos para todos os moradores para algum tempo, cada um poderia fazer seus trabalhos em suas próprias propriedades. Para se atingir este objetivo, havia boas perspectivas em Babenberg, pois a qualidade do solo era muito boa e através de um trabalho em grupo, facilmente poderia ser produzido trigo, milho, etc., suficiente para toda a colonização e grupo de imigrante.” No mesmo livro, a Sra. Elfrida Felder nos conta que: “Primeira grande família que foi morar em Babenberg foi Fidel Felder, com doze filhos, nos primeiros dias de agosto de 1934. Hoje a única casa antiga daquele tempo. Foi construída em 1942 pelo próprio Fildel Felder. Hoje mora o seu neto Alberto Magnus Felder na mesma casa.” ... “O primeiro moinho em Babenberg era dos Schenach, moinho de pedra. Gabriela Grande, a primeira professora de Babenberg é parteira. As famílias com muitos filhos sentiram a necessidade de construir uma igreja e uma escola. A senhora Ella, como chamava, era professora formada (Ella Grander), iniciou o trabalho com as crianças na escola e catequese, e seu esposo Josef Grander assumiu as funções de sacristão organizando os casamentos, etc. Não pode esquecer que a senhora Ella Grander muitas vezes foi chamada dia e noite para atender os partos. Senhora Ella assumia este compromisso, com muita habilidade, dedicação, calma e higiene. Ao senhor Franz Schimpfössl a comunidade deve à existência da bonita gruta de Nossa Senhora Aparecida, pois ele doou o terreno, instalou a água com a ajuda do filho adotivo Josef Zieher e Erwin Felder, o falecido Nicolaus Felder, na construção da gruta e voluntários. A via sacra foi esculpida e colocada, serviço de Erwin Felder, ele tinha muito amor e consideração por Babenberg. A direção da colonização viu-se obrigada a acabar com o sistema dos trabalhos comunitários e deixar que cada um começasse a trabalhar a própria terra. A comunidade desenvolveu-se rapidamente, tornando-se, na prática, o celeiro da colonização, pois a produção de alimentos e cerais era muito grande.” ... “Pelos anos cinquenta, com a grande corrida migratória para as terras do oeste paranaense, muitas famílias saíram de Babenberg para aquele estado outras localidades, a vila que existia em torno da pequena igreja desapareceu.” ... “As mais importantes famílias que hoje residem em Treze Tílias na cidade, já foram os moradores desta colônia”.

          Com essas e outras tantas histórias a Linha Babenberg continua hoje em dia mantendo sua vocação agrícola, e poucos moradores como a família do Sr. Alberto Magnus Felder, que mora numa casa de madeira construída por seu avô Erwin Felder em 1942. A sua grande criação de ovelhas dá à propriedade um cenário que lembra mais ainda as terras dos seus antepassados austríacos: os Alpes.

          Em um passeio pelas profundezas dessa região encontramos recantos peculiares. Uma sinuosa estrada nos conduz à Ponte Coberta Franz Schimpfösel na entrada de Babenberg. Ali existe um grande espaço de lazer e religiosidade. Um Salão de Festas e outras construções formam uma espécie de Centro de Eventos, seguido por um campo de futebol de grama rodeado por árvores muito antigas e altas. Grande parte delas circundam o lago onde estão situadas várias churrasqueiras para uso em confraternizações da comunidade. Os caminhos em meio à mata preservada nos levam ao alto da colina onde está situada uma Capela de madeira, construída em 1934, que com simplicidade conserva traços que remetem às igrejas alpinas dos colonizadores. Originalmente foi construída no local hoje ocupado pelo Salão de Festas, e posteriormente foi transportada para o ponto mais alto da colina. Na parte posterior da Capela outro caminho leva ao Cemitério dos Imigrantes. Numa espécie de clareira, o lugar eterniza um pouco da memória ancestral de homens, mulheres e crianças que deixaram seu ”Heimat” (“sua Pátria”, tradução livre do idioma Alemão) para em outro solo estabelecer seu lar. Seus nomes perpetuados em pequenas placas de metal estão apostos em cruzes de madeiras adornadas e fixas diretamente no solo da forma mais tradicional. Simbolicamente contêm um pouco da alma de cada um desses pioneiros, e marcam para sempre a jornada que ali se concluiu. Um local de oração e veneração onde a comunidade presta especial homenagem aos antepassados. Seguindo por um outro caminho, mais abaixo encontramos a Gruta Nossa Senhora Aparecida, um ambiente de peregrinação, agradecimento e fé. Essa gruta passou a existir a partir da segunda metade da década de 1970. Existem informações de que ali já havia uma fenda diagonal entre as rochas existentes, e a gruta foi feita pela escavação (inclusive manual) da pedra inferior. Foi inaugurada pelo Padre Johann Otto Küng em 9 de maio de 1976. Na sequência e contornando a colina há uma trilha em meio ao bosque onde estão colocadas esculturas em madeira esculpidas por Erwin Felder com imagens que representam as Estações da Via Sacra. Anualmente no dia 12 de outubro romarias acontecem rumo a Babenberg. Os romeiros partem da frente da Igreja Matriz Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, seguem por 8 km até chegarem à Gruta Nossa Senhora Aparecida onde é realizada um missa em homenagem à Santa Padroeira do Brasil; e após é servido um churrasco como forma de confraternização a toda a comunidade presente.

          Em Babenberg o silêncio só é quebrado pelo som do vento nas árvores e pelo canto dos pássaros: um lugar de paz que preserva a força da natureza original e onde ela impera exuberante. Folhas secas e pinhas se entremeiam por caminhos da densa mata, as vezes fechada, as vezes aberta. Resultam de portentosas árvores que compartilham o espaço com antigas araucárias, sendo elas as únicas testemunhas vivas de uma história que continua reverberando. Sim, eles já não estão mais lá, seus rastros também não existem mais, foram apagados assim como o oceano o fez: era um caminho sem volta e eles o sabiam. E foi essa mesma natureza que uma vez os acolheu e os nutriu, é que também é a sua guardiã, exercendo a confiança que a ela foi concedida. A sacralidade presente em Babenberg está, portanto, muito além da dimensão humana: possui uma energia sutil e contém a indelével imagem do passado vivido pelos seus. É na verdade uma grande amostra daquilo que a natureza e a humanidade são, foram e serão: um todo indivisível ao qual todos nós pertencemos.

          Simbolicamente Babenberg pode ser qualquer lugar que nos acolha, nos nutra e nos proteja. A singularidade dessa épica trajetória austríaca que aí se encerra, em minha visão, reúne fatos que são verdadeiramente únicos, mas ao mesmo tempo são universais. São heroicos em si e nos revelam que a capacidade humana pode ir muito além daquilo que se vê em uma primeira camada. Existirão outras, e outras e muitas outras mais. Que seu legado de superação nos fortaleça ainda mais, e não esqueçamos nunca, que em última instância, fazemos parte de um só povo: o povo de Deus, e que tenhamos sempre muito orgulho de nossas origens sem perder de vista aquilo que também estamos originando.

          As imagens fotográficas apresentadas nesta exposição virtual foram captadas em sua maioria em 2017, na véspera e no dia da procissão em homenagem à Nossa Senhora Aparecida, que acontece anualmente no dia 12 de outubro. Foram concebidas para serem apresentadas em tons monocromáticos. Me parece que quando retiramos as cores, nos restam as sombras, a luzes, os contrastes, as formas, os volumes, as texturas... sobra a essência, torna-se atemporal.

          Ofereço este trabalho a todos aqueles que migram. Para que sua dor não seja em vão, e que o seu destemor frente ao desafio do desconhecido seja a força propulsora para o cumprimento de sua missão, compensada pelos frutos que essa luta é capaz de te trazer.

          No foto-vídeo de 13 minutos a seguir outras reflexões sobre o tema: